Flávio Telles Melo*
O povo de Deus, desde que foi chamado, por meio do patriarca Abraão (Gn 12), a sair de Ur da Caldéia, na Mesopotâmia, para a terra prometida, Canaã, é um povo peregrino. É um povo caminhante. Um povo nômade a procura de melhores dias, de uma melhor situação de vida. Assim foi que Moisés (Ex 13 – 14) libertou seu povo da opressão do Egito e conduziu o povo de Deus pelo deserto, na certeza que o Deus da vida lhes acompanhava. Deus ia a sua frente e não lhes abandonava por mais infiel que o povo pudesse se mostrar em alguns momentos. É o Deus que promete ao seu povo “uma terra que mana leite e mel” (Ex 3, 8). Javé é o Deus da terra prometida. É o Deus que está ao lado do seu povo na luta pela terra. A terra significa para o povo de Deus a meta, o objetivo a ser realizado. Trata-se da realização das promessas de Deus ao seu povo. Isso porque nas Escrituras a benção de Deus pelos patriarcas significava fundamentalmente o advento da realização plena da vida em todas as suas dimensões, isto é: a posterioridade, a descendência e a longevidade. Mesmo depois de ter se tornado sedentário, fixado em sua terra, o povo judeu continuou sendo um povo caminhante. Era costume todo ano o povo se dirigir ao templo de Jerusalém em caravanas para celebrar a sua libertação da escravidão do Egito, a sua Páscoa, e outras festas religiosas. Deus sempre se faz do seu povo para que o povo se faça um Povo de Deus.
Hoje o novo povo de Deus, se mostra caminhante sempre rumo à terra prometida e repartida, de fraternidade e de comunhão entre Deus e seu povo. O povo caminha rumo à celebração definitiva da realização plena do Reino de Deus na sua história. Assim o povo de Deus tem feito romarias da terra por todo nosso país e pelo Ceará a muitos anos. Essas romarias tem sido momentos ricos de espiritualidade daquele cristão que só consegue viver a sua fé na vida de luta pela partilha da terra, da água, do pão, do saber e da alegria de se saber irmãos membros de um novo mundo onde não haja desigualdade e nem injustiças e opressão.
Assim, as romarias da terra tem sido também momentos proféticos de denúncia, anúncio, comunhão, celebração e fortalecimento da fé e do ânimo na luta de todo dia. É momento de denunciar a concentração da terra e da água nas mãos de poucos, se beneficiam dos grandes projetos governamentais (Am 5, 11-12). É momento de anúncio da boa nova do Reino de Deus que vem trazer uma vida em abundância (Jo 10, 10), que se concretiza na terra e na água conquistadas pela luta do povo. É momento de comunhão (At 2,42) e de fraternidade do povo que se se faz irmão na mesma luta e nos mesmos sonhos de uma nova sociedade construída pelas mãos dos que mais sofrem. É momento de celebração e de louvação da glória de Deus que se manifesta na glória da pessoa humana que conquista, pela organização popular, a sua libertação (Ex 15; Sl 37; Sl 41).
Nesse ano a XVI Romaria da Terra do Ceará acontecerá pela primeira vez aqui em Sobral, no sábado, dia 17 de agosto, com o tema “Terra, Água, Comunhão: bem viver em nosso chão”. Será um momento forte de celebração da luta pela terra e água no nosso Estado. Ao mesmo tempo, será um momento para, profeticamente, denunciarmos a concentração de terra nos municípios da nossa diocese, a exclusão da maioria da população dos grandes projetos em Sobral, a extrema desigualdade presente na cidade de Sobral, com o centro e alguns poucos bairros recebendo benfeitorias e a periferia ficando ao abandono; em contraste com a especulação imobiliária.
À medida que, nos últimos anos aumentou a concentração de terra, aumentaram, por outro lado, os conflitos de terra em municípios como Sobral e em Santa Quitéria, onde encontramos acampamentos de trabalhadores rurais resistindo à espera de desapropriação de terras. A expansão do perímetro urbano de Sobral tem provocado a expulsão de camponeses, com exceção de algumas famílias da comunidade de Mucambinho que, por isso, sofrem atos de violência e de ameaças. Ao mesmo tempo em que constatamos uma falta de política pública que beneficie a agricultura camponesa (uma política de acesso à terra, da agricultura consorciada em diversas culturas e o trabalho familiar), por outro lado é patente a valorização de uma agricultura empresarial. O agronegócio nos perímetros irrigados do Baixo Acaraú, Araras Norte, Jaibaras e Forquilha tem usado de forma privada recursos naturais que são públicos. Esses projetos, com o uso intenso de veneno, adubos e fertilizantes químicos, tem provocando a contaminação do solo dessas regiões. A produção da fruticultura voltada para o mercado externo (Europa) utiliza de forma privada a água de açudes públicos e do rio Acaraú. Por fim, a exploração, por meio de quatro grandes empresas, vinculadas ao agronegócio do coco, tem gerado conflitos e expropriação de territórios indígenas, especialmente os tremembés de Acaraú e Itarema ao mesmo tempo em que, empregando indígenas, precariza a mão de obra. Outro problema que os índios e pescadores têm enfrentado tem sido com a carcinicultura no baixo Acaraú, que, ao se expandir no litoral, além de expropriar terras dos pescadores tem contaminado o ecossistema os mangues daquela região.
Vejamos, agora, como a Pastoral da Terra do Ceará foi nesses últimos anos consolidando na vida da Igreja e dos camponeses a experiência das romarias da terra. Em 1984, há quase trinta anos, a CPT – Ceará iniciava a caminhada das romarias da terra com a romaria de Canindé, na terra dos romeiros de São Francisco das Chagas, com o lema POVO DE DEUS EM BUSCA DE TERRA E PÃO. A II Romaria da Terra aconteceu em 1985, em Juazeiro do Norte, na terra dos romeiros do Padre Cícero, e teve como lema CAMINHEIROS EM BUSCA DA TERRA LIVRE. As duas romarias seguintes, a III e a IV, acontecem novamente em Canindé; a III, em 1986, com o lema BUSCAMOS A JUSTIÇA E A VIDA NA TERRA MÃE e a IV, em 1988, com o lema LIBERTAR A TERRA, CONQUISTAR A VIDA. Acontece em Limoeiro do Norte, no Vale do Jaguaribe, em 1990, a V Romaria da Terra com o lema TERRA E ÁGUA: VIDA DO POVO. Na terra de Antônio Conselheiro, Quixeramobim, ocorre, em 1993, a VI Romaria com o lema NORDESTE: TERRA PROMETIDA AOS NORDESTINOS. A VII Romaria ocorre em Crateús, 1995, com o lema TERRA LIVRE, ÁGUA LIVRE, O SERTÃO FLORESCERÁ. No centenário do massacre de Canudos, em 1997, ocorre a VIII Romaria da terra, desta vez em Iguatu, com o lema NA LUTA POR TERRA E ÁGUA, O RENASCER DE CANUDOS. Retornando a Canindé, em 1999, a CPT realiza a IX Romaria com o lema CONQUISTAR TERRA, TRABALHO, VIDA. Retornando a outra cidade de romarias, a CPT realiza em Juazeiro do Norte a X Romaria com o lema DA TERRA E ÁGUA LIVRES, BROTA O MILAGRE DA VIDA, 2001. Pela primeira vez em Aracati, a CPT celebra XI Romaria com o lema ÁGUA E TERRA MÃE: DOAÇÃO DE DEUS, DIREITO DE TODOS, em 2003. Retornando ao Sertão Central, em Quixeramobim, em 2005, ocorre a XII Romaria com o lema POVOS DO CEARÁ, RETOMANDO SUAS TERRAS PARA VIVER, PRODUZIR E CELEBRAR. Em 2007, a capital do Estado recebe a XIII Romaria da Terra que tem como lema SOMOS TERRA, SOMOS ÁGUA, SOMOS VIDA! Depois de doze anos, em 2009, a Romaria volta a ser em Iguatu, desta vez com o lema O SEMIÁRIDO EM ROMARIA, POR MAIS VIDA E CIDADANIA! Há dois anos, em 2011, Itapipoca recebe pela primeira vez uma romaria, a XV Romaria da Terra, agora com o lema NO TESTEMUNHO DOS MÁRTIRES: TERRA, ÁGUA E DIGNIDADE.
No próximo mês de agosto chegará a vez de a nossa diocese receber os romeiros que, a partir de sua fé no Deus libertador, lutam por terra, água e comunhão. Eles veem de todas as dioceses do Ceará (Fortaleza, Itapipoca, Tianguá, Crateús, Limoeiro do Norte, Quixadá, Iguatu e Crato). Recebamos com muita alegria nossos irmãos e companheiros de luta. O dia 17 de agosto será um dia histórico para a Igreja de Sobral, para a CPT diocesana, para as pastorais sociais, os movimentos sociais e para todos aqueles que se solidarizam com a nossa fé e nossa luta. Sobral será um ponto de chegada para todos os romeiros da terra e será, para nós, um ponto de partida para o fortalecimento da nossa fé, da nossa luta e estímulo para que mais cristãos de Sobral se engajem nos trabalhos da CPT. Assim os trabalhadores rurais da zona norte do Estado, após essa romaria da terra, com certeza, sentirão mais ainda a presença evangelizadora e solidária da Igreja de Sobral à sua luta.
____________________________*Professor de Filosofia da UEVA. Licenciado em Teologia pelo Instituto de Teologia Pastoral (ITEP), hoje Faculdade Católica de Fortaleza (FCF). Mestre em Filosofia pela UECE.